sábado, 2 de julho de 2011

Auto-realização através do domínio da mente (Raja Yoga) - terceira parte

Todos os diferentes passos na Yoga visam levar-nos, cientificamente, a um estado de superconsciencia, ou samadhi. A inspiração existe na natureza de cada homem como existiu nos antigos profetas. Esses profetas não foram únicos: eram homens, como vós e eu. Eram grandes yogues. Tinham obtido superconsciência, e vós e eu podemos fazer o mesmo. O simples fato de um homem ter alcançado esse estado, prova que é possível a todos os homens fazerem o mesmo. Não só é possível, mas todos os homens devem, finalmente, chegar ao mesmo estado - e isso é religião.


Vimos, superficialmente, os diferentes passos da Raja-Yoga, exceto os mais sutis, o treinamento na concentração, que é a meta para a qual nos leva a Raja-Yoga. Vemos, como seres humanos, que todo o nosso conhecimento, que chamamos racional, se refere à consciência. Minha consciência desta mesa, e de vossa presença, leva-me a saber que esta mesa e vós estais aqui. Ao mesmo tempo, há uma parte muito grande da minha existência, da qual não estou consciente, como dos diferentes órgãos dentro do corpo, das diferentes partes do cérebro, etc.

Quando como, faço-o conscientemente. Quando assimilo, faço-o inconscientemente, Quando o alimento é transformado em sangue, isso é feito inconscientemente. Quando as diferentes partes do meu corpo são fortalecidas por esse sangue, isso é feito inconscientemente. Entretanto, sou eu quem está fazendo isso. Não pode haver vinte pessoas neste corpo único. Como sei que faço isso, e não outra pessoa qualquer? É possível dizer que a minha parte está apenas no comer e assimilar o alimento, ie que o fortalecimento do corpo pelo alimento é feito para mim por alguma outra pessoa? Isso não procede, porque pode ser demonstrado que quase todas as ações das quais somos agora inconscientes, podem ser trazidas para o plano da consciência. O coração bate, aparentemente sem controle. Nenhum de nós pode controlar o coração, que faz seu próprio caminho. Mas, pela prática, os homens podem controlar até mesmo o coração, fazendo com que ele palpite conforme desejemos, vagarosa ou rapidamente, ou chegue quase a parar. Quase todas as partes do corpo podem ser trazidas sob controle. Que mostra tal coisa? Que as funções existentes abaixo da consciência também são realizadas por nós, acontecendo, apenas, que as realizamos inconscientemente.

Temos, então, dois planos nos quais trabalha a mente humana. O primeiro é o plano consciente, no qual todo o trabalho é acompanhado pela sensação do ego. Depois vem o plano inconsciente, onde o trabalho não é acompanhado pela sensação do ego. Essa parte do trabalho da mente, que não é acompanhada pela sensação do ego, é trabalho inconsciente, e a parte acompanhada pela sensação do ego é trabalho consciente. Nos animais inferiores, esse trabalho inconsciente é chamado instinto. Em animais superiores, e no mais elevado deles, o homem, prevalece o que chamamos trabalho consciente.

Mas isto não termina aqui. Há ainda um plano mais alto, no qual a mente pode trabalhar. Ela pode ir além da consciência. Tal como o trabalho inconsciente está abaixo da consciência, há outro trabalho que está acima da consciência e que também não é acompanhado pela sensação do ego. A sensação do ego está apenas no plano do meio. Quando a mente está acima ou abaixo dessa linha, não há sensação de "eu", e ainda assim a mente trabalha. Quando a mente vai para além dessa linha de autoconcciência, é o chamado samadhi, ou superconsciência.

Como, por exemplo, sabemos que um homem em samadhi nio foi para baixo da consciência, não degenerou, em lugar de subir? Em ambos os casos os trabalhos não são acompanhados pelo ego. A resposta é a seguinte: pelos efeitos, pelos resultados do trabalho, sabemos o que está abaixo e o que está acima. Quando um homem adormece profundamente, entra num plano abaixo da consciência. Trabalha o corpo durante todo o tempo, respira, move-se talvez em seu sono, sem qualquer acompanhamento da sensação do eu. Está inconsciente, e quando acorda é o mesmo homem que era antes de adormecer. A soma total de conhecimento que possuía antes de adormecer permanece a mesma, não aumenta absolutamente. Não há esclarecimento. Mas quando um homem entra em samadbi, se para ele vai como tolo, dele vem como sábio.

O que produz a diferença? De um estado o homem sai como o mesmo homem que para ele entrou. De um outro estado o homem sai esclarecido, um sábio, um profeta, um santo; todo seu caráter está modificado, sua vida transformada, iluminada. São esses os dois efeitos. Sendo os efeitos diferentes, as causas têm de ser diferentes. já que essa iluminação com que um homem retorna do samadhi é muito maior do que a que se pode obter da inconsciência, ou muito mais elevada do que a que pode obter pelo raciocínio, em estado consciente, deve vir, portanto, da superconscíência, e samadhi é chamado o estado de superconsciência.

Esta é, em resumo, a idéia do samadhi. Qual é a sua aplicação ? A aplicação aqui está. O campo da razão, ou o consciente trabalho da mente, é estreito, limitado. Há um círculo dentro do qual a razão do homem deve mover-se. Ela não pode ir além. Toda a tentativa para ir além é, impossível; ainda assim é para além desse círculo da razão que está o que a humanidade considera mais caro. Todas essas perguntas - se há uma Alma imortal, se há um Deus, se há uma Inteligência suprema orientando este universo - estão para além do campo da razão.

Todas as nossas teorias éticas, todas as nossas atitudes morais, tudo quanto é bom e grande na natureza humana, têm sido moldado sobre respostas que vieram de acolá desse círculo. É muito importante, por conseguinte, que tenhamos respostas para essas perguntas. Se a vida é apenas um jogo rápido, se o universo é apenas uma "fortuita combinação de átomos", por que devo fazer bem a outrem? Por que haveria misericórdia, justiça, ou sentimento de solidariedade?

Toda ética, toda ação humana, e todo pensamento humano, se baseiam nessa idéia de desinteresse. Toda a idéia da vida humana pode ser posta nesta palavra, desinteresse. Por que seríamos desinteressados? Onde está a necessidade, a força, o poder, que me compele a ser desinteressado? Podeis chamar a vós mesmos homens racionais, utilitários, mas se não me mostrais as razões para o utilitarismo, eu digo que sois irracionais. Mostrai-me as razões por qun eu não deveria ser egoísta. A resposta está no fato de este mundo não passar de uma gota num oceano infinito, um elo de urnA cadeia infinita. Onde colheram essa idéia os que pregaram o desinteresse, e o ensinaram à raça humana? Sabemos que ela não é instintiva: os animais, que têm instinto, não a conhecem. Também não é razão: a razão nada sabe sobre tal idéia. Então, donde veio ela?

Encontramos, estudando história, um fato que foi sustentado em comum por todos os grandes mestres de religião que o mundo já teve. Todos eles declaram que receberam suas verdades do acolá; apenas muitos deles não sabem donde elas lhes vieram. Por exemplo, um diz que um anjo desceu, na forma de um ser humano com asas, e lhe disse: "Ouve, ó homem, esta é a mensagem!" Outro diz que um deva , uni ser radiante, lhe apareceu. Um terceiro diz que sonhou que seu ancestral veio e contou-lhe umas tantas coisas e não sabia nada além disso. Mas isto é comum em todas as declarações: que o conhecimento veio do acolá, não através da sua capacidade de raciocínio. Que ensina a ciência da Yoga? Ensina que eles tinham razão ao dizerem que seu conhecimento lhes vinha de acolá do raciocínio, porém que esse conhecimento lhes vinha de dentro deles próprios.

O yogue ensina que a própria mente tem um estado superior de existência, acima da razão, um estado superconsci ente, e quando a mente alcança esse estado superior, então seu conhecimento, metafísico e transcendental desce até o homem. Esse estado de ir para além da razão, de transcender a natureza humana comum, pode, às vezes, vir por acaso para um homem que não compreende sua ciência. Ele, por assim dizer, tropeça nele, e quando isto acontece, interpreta-o, geralmente, como vindo de fora. Assim, isso explica por que uma inspiração, ou um conhecimento transcendental, pode ser o mesmo em países diferentes, mas num país ele parece vir através de um anjo, num outro, através de um deva, e num terceiro, através de Deus. Que significa isso? Significa que a mente trouxe o conhecimento pela sua própria natureza, e que o encontro do conhecimento é interpretado de acordo com as crenças e a educação da pessoa através da qual ele veio. O fato real é que esses vários homens, por assim dizer, tropeçaram no estado superconsciente.

O yogue diz que há grande perigo em tropeçar nesse estado. Em muitíssimos casos, há o perigo de perturbação do cérebro, e, como regra, verificareis que todos esses homens que tropeçaram no estado superconsciente, sem compreendê-lo, tatearam nas trevas e tiveram, geralmente, ao lado de seu conhecimento, algumas curiosas superstições, por muito grandes que eles tenham sido. Abriram-se à alucinação. Maorné disse verdades maravilhosas. Se lerdes o Corão vereis as mais maravilhosas verdades mescladas com superstições. Como explicaremos isso? Aquele homem foi inspirado, sem dúvida, mas, por assim dizer, tropeçou na inspiração. Não era um yogue treinado e não sabia a razão daquilo que fazia. Pensai no bem que Maorné fez ao mundo, e pensai no grande mal que foi feito através do seu fanatismo! Pensai nos milhões de pessoas que foram massacradas através de seus ensinamentos - mães despojadas de seus filhos, crianças tornadas órfãos, regiões inteiras destruídas, milhões e milhões de pessoas mortas!

Vemos esse perigo quando estudamos as vidas dos grandes mestres, como Maorné e outros. Ainda assim, vemos, ao mesmo tempo, que eles eram todos inspirados. Sempre que um profeta alcançava o estado de superconsciência pela elevação de sua natureza emocional, trazia dele não somente alguma verdade, mas também algum fanatismo, alguma superstição, que fizeram tanto mal ao mundo quanto a grandeza de seus ensinamentos o ajudaram. Para obter alguma razão da massa de incongruências que chamamos vida humana, temos de transcender nossa razão, mas devemos fazer isso cientificamente, lentamente, pela prática regular, e devemos expulsar toda superstição. Devemos tomar o estudo do estado superconsciente tal como o de qualquer outra ciência. Na razão devemos lançar nossos fundamentos. Devemos seguir a razão até onde ela nos conduz, e quando a razão falhar, ela própria nos mostrará o caminho para o plano mais alto. Quando ouvirdes um homem dizer: "eu estou inspirado", e depois falar de maneira desarrazoada, rejeitai-o. Por que? Porque esses três estados - instinto, razão e super consciência, ou inconsciente, consciente e superconsciente - pertencem a uma mesma mente. Não há três mentes, no homem, mas um estado da mente se desenvolve para os outros dois. O instinto se desenvolve para a razão, e a razão para a consciência transcendental. Portanto, nenhum desses estados contradiz o outro. A inspiração real jamais contradiz a razão, mas cumpre-a. Tal como encontrais grandes profetas dizendo: "Não vim para destruir, mas para cumprir", a inspiração sempre vem para cumprir a razão, e está em harmonia com ela.

Todos os diferentes passos da Yoga têm a intenção de nos levar cientificamente ao estado superconsciente, ou samadhi Ainda mais, esse é o ponto mais vital para compreender: a inspiração está tanto na natureza de cada homem como esteve na dos antigos profetas. Esses profetas não foram os únicos, e sim, homens como vós ou eu. Eram grandes yogues. Tinham ganho essa super consciência, e vós e eu podemos fazer o mesmo. Eles não eram pessoas peculiares. O simples fato de um homem chegar a alcançar aquele estado, prova que isso é possível para todos os homens. Não só é possível, mas todos os homens devem alcançar, finalmente, esse estado - e isso é religião. A experiência é o único mestre que temos. Podemos falar e raciocinar durante toda a nossa vida, mas não compreenderemos uma palavra da verdade enquanto não fizermos pessoalmente a experiência dela,

Para alcançar o estado de superconsciência de maneira científica, é necessário passar através dos vários passos da Raja-Yoga que expus. Depois de pratyahara e dhâtwna, chegamos a dhyana, a meditação. Quando a mente foi treinada para se conservar fixa em certo ponto externo ou interno, adquire o poder de fluir em corrente ininterrupta, por assim dizer, em direção a um ponto. Esse estado é chamado dhyana, Quando se tem tão intensificado o poder de dhyana, a ponto de poder eliminar a percepção exterior e permanecer meditando apenas na parte interior, e seu significado, tal estado é chamado samadhi. Isto é, se a mente pode primeiro concentrar-se sobre um objeto, e depois tem capacidade para continuar nessa concentração por um certo período de tempo, para, pela concentração continuada, tratar apenas da parte interior da qual o objeto era o efeito, tudo vem a ficar sob o controle dessa mente.

Esse estado meditativo é o mais alto da existência. Enquanto existir desejo, a verdadeira felicidade não pode vir. 9 apenas o estado contemplativo, testemunhador dos assuntos que nos traz gozo e felicidade reais. O animal tem a felicidade nos sentidos, o homem no intelecto, e o deus na contemplação espiritual. Só a alma que atingiu esse estado contemplativo pode ver o mundo realmente belo. Para quem nada deseja e não se mescla com nada, as multiformes transformações da natureza são um panorama de beleza e sublimidade.

Quando, por preparação prévia, a mente se torna forte e controlada, e tem o poder da percepção mais apurada, deve ser empregada na meditação. Essa meditação deve começar com os objetos grosseiros, e lentamente erguer-se, passo a passo, para os mais sutis, até que se tornem objetos sem objetivos. A mente deveria primeiro ser empregada na percepção das causas externas da sensação, depois nos movimentos interiores, e finalmente em suas próprias reações. Quando conseguiu perceber as causas externas da sensação por si mesma, a mente adquirirá o poder de perceber todas as existências materiais sutis, todos os corpos e formas sutis. Quando puder conseguir a percepção dos movimentos dentro de nós mesmos, a mente ganhará o controle de todas as ondas mentais, em si mesma ou nas outras mentes, mesmo antes delas se terem transformado em energias físicas. E quando conseguir captar a reação mental por si mesma, o yogue adquirirá o conhecimento de tudo, já que todo o objeto sensível, e todo o pensamento, são o resultado dessa reação. Então ele terá visto os próprios fundamentos de sua mente, e ela estará sob seu perfeito controle. Poderes diferentes virão ter ao yogue: se ele ceder às tentações de qualquer deles, o caminho para seu progresso futuro ficará obstruído. Assim é o mal de correr atrás de prazeres. Mas se ele for bastante forte para rejeitar mesmo esses poderes miraculosos, atingirá a meta da Yoga, a completa supressão das ondas no oceano da mente. Então, a glória da Alma, não perturbada pelas distrações da mente nem pelos movimentos do corpo, brilhará em todo o seu fulgor, e o yogue se verá como sempre foi: a essência do Conhecimento, o Imortal, o que tudo satura.

Samadhi é propriedade de cada ser humano - e até de cada animal. Desde o mais baixo dos animais até o mais alto dos anjos, em algum momento terão de alcançar esse estado. E então, somente então, a verdadeira religião começará para ele. Até então só lutamos em direção desse estado. Não há diferença agora entre nós e os que não têm religião, porque não temos experiência. Para que serve a concentração, a não ser para nos trazer essa experiência? Cada um dos passos para alcançar o samadki foi raciocinado, adequadamente ajustado, cientificamente organizado e, quando fielmente praticado, seguramente nos conduzirá ao fim desejado. Então, todos os desgostos cessarão, todas as angústias se desvanecerão. As sementes das ações serão queimadas, e a alma será livre para sempre.

Houve um grande deus-sábio chamado Nârada. Assim como há grandes sábios entre a humanidade, há grandes yogues entre os deuses. Nârada foi um bom e muito grande yogue. Viajava por toda a parte. Um dia atravessava uma floresta, quando viu um homens que estivera meditando tanto tempo na mesma posição que as formigas brancas tinham construído em torno de seu corpo um grande monte de terra. Ele disse a Nârada:

- Para onde vais?

- Vou para o céu.

- Então pede a Deus que tenha piedade de mim, quando eu alcançar a libertação.

Mais adiante Nârada viu outro homem, que por ali estava saltando, cantando e dançando, e lhe disse, com voz e gestos alucinados.

- õ Nârada, aonde vais?

- Vou para o céu.

- Então pede a Deus que eu me veja liberto.

Nârada continuou seu caminho. Com o correr do tempo tornou a passar por aquela mesma estrada e lá estava o homem que estivera meditando, com o monte das formigas em torno de seu corpo. Este lhe indagou:

- Oh Narada, pediste por mim ao Senhor?

- Oh! Sim.

- Que disse Ele?

- O Senhor me disse que alcançarás a libertação dentro de mais quatro nascimentos.

Então, o homem começou a chorar e a gemer, dizendo:

- Meditei a ponto de as formigas construírem sua casa em torno de mini, e ainda tenho que esperar quatro nascimentos!

Nârada seguiu seu caminho, e encontrou o outro homem.

- Perguntaste a Deus o que te pedi?

- Oh! Sim. Estás vendo aquele tamarindeiro? Terás de renascer tantas vezes quantas são as folhas daquela árvore; então alcançarás a libertação.

O homem começou a dançar de alegria, dizendo:

- Oh, estarei liberto em tão curto tempo!

E ouviu-se uma voz:

- Meu filho, estás liberto desde este momento.

Foi essa a recompensa da sua perseverança. Este estava pronto a trabalhar através de tantas existências, e nada o desencorajava. Mas o primeiro achara as quatro existências um tempo demasiado longo. Tão-só uma perseverança igual. à do homem disposto a esperar durante eons , traz consigo os mais altos resultados.

Quatro Yogas deAuto-Realização


Swami Vivekananda

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