sábado, 2 de julho de 2011

Auto-realização através do serviço altruísta (Karma Yoga) - terceira parte

O efeito principal do trabalho realizado pelos outros é o de nos purificar. Por meio de esforço constante para fazer bem aos demais, estamos tentando esquecer-nos de nós. Esse esquecimento do eu é a grande lição que devemos aprender na vida. Cada ato de caridade, cada pensamento de solidariedade, cada ação que represente auxílio,, cada bom movimento, retira de nossos pequenos eus a auto-importância, e leva-nos a pensar orn nós mesmos como os menores, os últimos. Portanto, todos eles são bons.


Nosso dever para com os demais significa ajudá-los, fazer bem ao mundo. Por que teríamos de fazer bem ao mundo? Evidentemente para ajudar o mundo. Esse deveria ser em nós o mais alto motivo. Mas, se considerarmos bem, verificamos que o mundo não pede absolutamente o nosso auxílio. Este mundo não foi feito para que vós ou eu viéssemos ajudá-lo. Li certa vez um sermão que dizia: "Todo este belo mundo é muito bom, porque nos dá tempo e oportunidade para ajudar outros". Aparentemente, esse é um belo sentimento, mas não será uma blasfêmia dizer que o mundo precisa de nossa ajuda? Não podemos negar que há nele muita angústia. Ajudar outros é, portanto, a melhor coisa que podemos fazer, embora, em última análise, verifiquemos que ajudar os outros é apenas ajudar a nós próprios. Quando eu era menino, tinha alguns ratinhos brancos. Conservava--os numa caixinha provida de pequenas rodas, e quando os ratos tentavam atravessar as rodas, elas giravam e giravam, e os anímaizinhos não saíam do mesmo lugar. Assim é o mundo e o auxílio que nós lhe damos. O único auxílio vem do exercício moral que fazemos.

O mundo não é bom nem mau. Cada homem manufatura um mundo para si próprio. Se um cego começar a fazer uma idéia do mundo, ele lhe aparece como duro ou suave, frio ou quente. Somos massas de felicidade ou angústia, e vimos isso centenas de vezes em nossas vidas. Geralmente, os jovens são otimistas e os velhos pessimistas. Os jovens têm a vida diante de si, os velhos queixam-se de que seus dias já passaram. Centenas de desejos que não podem realizar debatem-se em seus corações. Não obstante, ambos são tolos. A vida é o bem ou o mal, de acordo com o estado de espírito com que a contemplamos. Em si mesma não é uma coisa nem outra. O fogo, em si mesmo, não é bom nem mau. Quando ele nos aquece, dizemos: "Como o fogo é belo!" Quando nos queima os dedos voltamo-nos contra ele. Ainda assim, em si mesmo ele não é bom nem mau. Segundo o usamos, ele nos dá a sensação do bom ou do mau. Assim também é o mundo. Ele é perfeito. Perfeição no sentido de que preenche seus fins. Podemos estar todos certos de que continuará lindamente bem sem nós, e não precisamos preocupar nossas cabeças desejando ajudá-lo.

Contudo, devemos fazer o bem. O desejo do bem é a mais alta força motriz que temos, se soubermos, todo o tempo, que é um privilégio ajudar outros. Não vos coloqueis num alto pedestal, com uma pequena moeda na mão, exclamando: "Aqui tens, meu pobre homem". Mas agradecei a presença ali daquele homem pobre, para que, dando-lhe algo, possais ajudar a vós mesmos. Não é quem recebe o que tem a bênção e sim o que dá. Agradecei o fato de vos permitirem exercer vosso poder de benevolência e misericórdia no mundo, tornando-vos, assim, puros e perfeitos. Todos os bons atos tendem a nos fazer puros e perfeitos. Que podemos fazer de melhor? Construir um hospital, fazer estradas, ou levantar casas de caridade? Podemos organizar a caridade e coletar dois ou três milhões de dólares, construir um hospital com um milhão, com o segundo dar bailes e beber champanha, e com o terceiro deixar os funcionários roubarem a maior parte, ficando o resto, finalmente, para os pobres. Mas o que vem a ser tudo isso? Um furacão pode, em cinco minutos, deitar abaixo todas as nossas construções. Que faremos, então? Uma erupção vulcânica pode varrer da face da Terra todas as nossas estradas e hospitais, cidades e edifícios.

Deixemos de parte toda essa tola conversa que gira em torno do bem que fazemos ao mundo. Ele não está esperando pela vossa ou pela minha ajuda. Entretanto, devemos trabalhar e fazer o bem constantemente, porque isso é uma bênção para nós mesmos. Essa é a única maneira pela qual podemos tornar-nos perfeitos. Mendigo algum ao qual ajudamos nos deve sequer uma só moedinha: nós lhe devemos tudo, porque ele nos permitiu exercer no3sa caridade para com a sua pessoa. É inteiramente errado pensar que fizemos ou podemos fazer bem ao mundo, ou pensar que ajudamos alguém. É um pensamento insensato, e todas as coisas insensatas trazem angústia. Pensamos ter ajudado certo homem e. esperamos dele gratidão. E, como não a manifesta, sentimo-nos infelizes. Por que deveríamos esperar algo em retribuição daquilo que fizemos? Sede gratos ao homem que ajudais, pensai nele como em Deus. Não é um grande privilégio termos permissão para adorar a Deus através do auxílio aos nossos semelhantes ? Se fossemos realmente desapegados, escaparíamos de toda essa dor de inútil expectativa, -e poderíamos fazer, alegremente, bom trabalho no mundo. jamais a infelicidade e a angústia vêm através de trabalho feito sem apego. O mundo continuará com sua felicidade e sua angústia através da eternidade.

Havia um homem pobre que desejava algum dinheiro, e tinha ouvido dizer que se conseguisse agarrar um gênio poderia ordenar-lhe que lhe trouxesse dinheiro ou qualquer outra coisa que desejasse. Estava, portanto, muito ansioso para agarrar um gênio. Foi procurar um homem que lhe desse um gênio, e acabou por encontrar um sábio com grandes poderes. Solicitou seu auxílio e o sábio perguntou-lhe o que fazia ele com um gênio. - Desejo um gênio para trabalhar em meu benefício. Ensinai-me como agarrar um, senhor. Desejo isso mais que tudo.

Mas o sábio respondeu:

- Não vos preocupeis. Voltai para a vossa casa.

No dia seguinte o homem tornou a procurar o sábio, e começou a chorar e a suplicar:

- Dai-me um gênio. Preciso de um gênio, senhor, para ajudar-me.

O sábio acabou por aborrecer-se, e disse-lhe:

- Tomai este talismã, repeti esta palavra mágica, e o gênio virá, fazendo o que quer que lhe ordeneis fazer. Mas tende cuidado. Os gênios são terríveis e devem ser mantidos constantemente ocupados. Se deixardes de dar trabalho ao vosso, ele vos tirará a vida.

O homem respondeu:

- Isso é fácil. Posso dar-lhe trabalho por toda a sua vida.

Então, foi para uma floresta, e depois de ter repetido longamente a palavra mágica, um enorme gênio lhe apareceu e disse:

1 - Sou um gênio. Fui conquistado por tua magia, mas deves manter-me constantemente ocupado. No momento em que deixares de me dar trabalho, eu te matarei.

O homem disse:

- Constrói-me um palácio.

O gênio respondeu:

- Está feito. O palácio já está construído.

- Dá-me dinheiro - falou o homem.

- Aqui está o teu dinheiro - replicou o gênio.

- Derruba esta floresta e constrói uma cidade em seu lugar.

- Está feito - disse o gênio. - Mais alguma coisa?

Então o homem começou a assustar-se e pensou que nada mais poderia ordenar ao gênio, que fazia tudo num abrir e fechar de olhos.

O gênio declarou:

- Dá-me algo para fazer senão eu te comerei.

O pobre homem já não encontrava ocupação para ele e estava apavorado. Correu, correu, e por fim encontrou o sábio e disse-lhe:

- Oh! Senhor, protegei a minha vida!

O sábio perguntou-lhe o que lhe acontecia, e o homem respondeu:

- Não tenho mais nada para ordenar ao gênio. Tudo que eu lhe digo, ele faz num momento, e ameaça comer-me se não lhe der trabalho.

Nesse momento chegou o gênio, dizendo:

- Eu te comerei.

E ia comer o homem, que começou a tremer, suplicando ao sábio que lhe salvasse a vida.

O sábio falou:

- Encontrarei uma saída. Olhai para este cio, que tem a cauda curva. Arrancai rapidamente a vossa espada e cortai-lhe a cauda, dando-a ao gênio para endireitá-la.

O homem cortou a cauda do cão e deu-a ao gênio, dizendo:

- Endireita-a para mim.

O gênio agarrou a cauda e, lenta e cuidadosamente, endireitou-a. Mal, porém, largou dela, eis que de novo se enrolou. Mais uma vez, trabalhosamente, ele a endireitou, mas o resultado foi o mesmo. De novo, pacientemente, endireitou-a, mas mal a largou, ela de novo se enrolou. Assim ficou ele durante dias e dias, até que se sentiu exausto e disse:

- Nunca na minha vida tive transtorno igual. Sou velho, um gênio veterano, mas nunca cheguei a ter transtorno igual. Vou fazer uma combinação contigo. Liberta-me, e poderás conservar tudo quanto te dei, com a minha promessa de que- não te farei mal.

O homem ficou encantado e aceitou alegremente a oferta.

Este mundo é como a cauda enrolada de um cão, e as pessoas levam a lutar para endireitá-la durante centenas de anos. Quando largam dela, eis que de novo se enrola. Como poderia ser de outra maneira?

É preciso, primeiro, saber como trabalhar sem apego, para que não se chegue a ser um fanático. Quando soubermos que este mundo é como a cauda enrolada de um cão, cauda que jamais poderá ser endireitada, não nos tornaremos fanáticos. Se não houvesse fanatismo no mundo, ele progrediria muito mais do que agora. É um erro supor que o fanatismo pode impulsionar o progresso da humanidade. Pelo contrário, é um elemento que retarda esse progresso, gerando ódio e cólera, e levando os indivíduos a lutarem uns contra os outros, fazendo-os sentirem-se mutuamente antipáticos. Pensamos que o que quer que possuamos ou façamos é a melhor coisa do mundo, e que o que não possuímos nem fazemos nada vale. Lembrai-vos sempre, portanto, da história da cauda enrolada do cão, de cada vez que tiverdes tendência para vos fanatizar. Não precisais preocupar-vos ou ficar insones por causa do mundo, ele seguirá sem vós. Quando tiverdes evitado o fanatismo, e só então, trabalhareis bem. O homem de cabeça bem equilibrada, o homem calmo, de bom julgamento e nervos frios, dotado de grande capacidade de simpatia e amor, é o que faz bom trabalho, e assim fazendo, faz bem a si próprio. O fanático é insensato e não tem simpatia. jamais pode endireitar o mundo, nem se tornará puro ou perfeito.

- Assim como cada ação que de nós emana a nós retorna como reação, as nossas ações podem agir sobre outros e as dos outros podem agir sobre nós. Talvez todos vós tenhais observado o fato de que quando as pessoas cometem más ações, tornam-se cada vez piores, e quando começam a fazer o bem, tornam-se cada vez mais fortes e aprendem a fazer constantemente o bem.

Essa intensificação da influência da ação não de ser explicada em qualquer outro terreno senão o que lioz podermos agir e reagir uns sobre os outros. Quando estou praticando determinada ação, minha mente está, podemos dizer, num certo estado de vibração, e todas as mentes em circunstâncias idênticas estarão expostas a ser afetadas pela minha mente. Suponhamos que existissem nesta sala vários instrumentos musicais afinados pelo mesmo tom, numa sala. Podeis ter reparado que quando um instrumento é tocado, os demais têm tendência para vibrar de forma a dar a mesma nota. Assim, todas as mentes que têm a mesma tensão, por assim dizer, serão igualmente afetadas pelo mesmo pensamento. Naturalmente, esta influência do pensamento sobre a mente variará de acordo com a distância e outras causas, mas a mente está sempre aberta para ser influenciada. Suponhamos que eu esteja cometendo um ato mau, minha mente está num certo estado de vibração, e todas as mentes do universo que estiverem em estado idêntico têm a possibilidade de ser afetadas pelas vibrações da rainha mente. Assim, quando estou fazendo uma boa ação, minha mente está em outro estado de vibração, e todas as demais mentes afinadas por ela têm a possibilidade de ser afetadas pela minha mente, e esse poder da mente sobre a mente é maior ou menor, de acordo com a maior ou menor força da tensão.

Seguindo um pouco mais esse símile, é muito possível que, tal como as ondas de luz podem viajar durante milhões de anos antes de alcançar qualquer objeto, as ondas do pensamento também podem viajar centenas de anos antes de encontrarem um objeto com o qual possam vibrar em uníssono. É muito possível, portanto, que esta nossa atmosfera esteja repleta de tais pulsações de pensamento, tanto bons como maus. Cada pensamento projetado de cada cérebro vai pulsando, por assim dizer, até encontrar um objeto adequado que o receba. Qualquer mente que esteja aberta para receber alguns desses impulsos, os receberá imediatamente. Assim, quando um homem comete más ações, leva sua mente a um estado de tensão, e todas as ondas correspondentes a esse estado de tensão, que se pode dizer já estarem na atmosfera, lutarão para entrar em sua mente.

Corremos, portanto, um duplo perigo ao fazer o mal: primeiro abrimo-nos a todas as más influências circundantes; depois, criamos o mal que afetará outros, talvez centenas de anos a partir de então. Fazendo o mal prejudicamo-nos, e prejudicamos outros. Fazendo o bem, fazemos o bem a nós próprios e também aos outros. E,' como todas as forças do homem, essas forças do bem e do mal também reúnem forças retiradas do exterior.

De acordo com o Karma-Yoga, a ação que se realizou não pode ser destruída enquanto não der seus frutos. Poder algum da natureza pode impedi-Ia de produzir seus resultados. Se eu cometo uma ação má, devo sofrer por isso -, não há poder no universo que o impeça ou detenha. Igualmente, se realizo uma boa ação, não há poder no universo que possa impedi-Ia de dar bons resultados. A causa deve produzir seus efeitos; nada poderiam pedir ou restringir tal coisa.

Agora vem um ponto muito belo e muito sério da Karma-Yoga, isto é, o que diz que as nossas ações, boas ou más, estão intimamente relacionadas umas com as outras. Não podemos traçar uma linha de demarcação e dizer que esta ação é inteiramente boa ou aquela inteiramente má. Não há ação que não produza bons e maus frutos ao mesmo tempo. Para dar o exemplo mais próximo: eu estou falando convosco e alguns de vós talvez pensem que estou fazendo bem. E, ao mesmo tempo, eu estarei, talvez, matando milhares de micróbios na atmosfera. Assim, estou fazendo mal a alguma outra coisa. Quando uma ação faz bem aos que conhecemos e que nos estimam, dizemos que se trata de uma ação muito boa. Por exemplo, podeis dizer que a minha conversa convosco é muito boa, mas os micróbios não o diriam. Não vedes os micróbios, mas vedes a vós mesmos. A maneira pela qual a minha palavra vos afeta é evidente para vós, mas já não é tão evidente a maneira pela qual ela afeta os micróbios. E assim, também, se analisarmos nossas más ações, podemos descobrir que algum bem resulta possivelmente delas, algures. Aquele que numa boa ação vê que existe algo de mau, e no meio do mal vê que há algo de bom, conheceu o segredo do trabalho.

E que se segue daí? Que tentemos como tentemos, não pode haver ação alguma perfeitamente pura ou perfeitamente impura, tomando pureza e impureza no sentido de prejuízo e não-prejuízo. Não podemos respirar nem viver sem prejudicar outros, cada bocado de comida que ingerimos é tirado de uma outra boca. Nossas vidas vão apertando outras vidas. Podem ser as vidas de homens, ou animais, ou pequenos micróbios, mas algumas delas nós estaremos comprimindo. Sendo esse o caso, segue-se, naturalmente, que a perfeição jamais pode ser atingida pelo trabalho. Podemos trabalhar através de toda a eternidade, mas não encontraremos a saída desse intrincado labirinto. Podeis trabalhar e trabalhar, e trabalhar. Não haverá fim para essa associação inevitável de bem e de mal nos resultados do trabalho.

O segundo ponto a considerar é o seguinte: Qual é o fim do trabalho? Verificamos que a vasta maioria das pessoas, em cada país, acredita que haverá época em que o mundo se tornará perfeito, quando não mais haverá doença, ou morte, infelicidade ou perversidade. Essa é uma idéia ótima, uma boa força motriz para inspirar e animar os ignorantes, mas se refletimos por um momento, veremos, a julgar pela própria idéia, que ela não se realizará. Como poderia ser assim, se vemos que o bem e o mal são o verso e o reverso da mesma medalha? Como podeis ter o bem sem o mal ao mesmo tempo? Que queremos dizer quando falamos de perfeição? Vida perfeita é uma contradição de ter-mos. A própria vida é um estado de luta contínua entre nós próprios e tudo quanto é exterior. A cada momento estamos realmente lutando com a natureza externa, e se formos derrotados, nossa vida se irá. Há, por exemplo, uma luta contínua pelo alimento e pelo ar. Se nos faltarem o alimento e o ar, morreremos. A vida não é uma coisa simples e a fluir suavemente; mas é um efeito composto. É a essa luta complexa entre algo interno e o mundo externo que chamamos vida. Portanto, está claro que quando a luta cessar haverá um fim para a vida. O que consideramos felicidade ideal é isso - a cessação dessa luta. Mas, a essa altura, a vida cessará, pois a luta só pode ter fim quando a própria vida estiver terminada.

já vimos que, ajudando o mundo, ajudamos a nós próprios. O efeito principal do trabalho realizado em benefício de outros é purificar-nos. Por meio do esforço constante para fazer o bem a outros, estamos tentando esquecer-nos de nós mesmos, e esse esquecimento do eu é a grande lição que temos de aprender na vida. O homem pensa insensatamente que se pode fazer feliz, e após anos de luta verifica, finalmente, que a verdadeira felicidade consiste em matar o egoísmo, e que ninguém pode fazê-lo e faz, a não ser ele próprio. Cada ato de caridade, cada pensamento de simpatia, cada ação de socorro, cada boa ação, tira um tanto da auto- importância de nossos pequenos eus, e leva-nos a pensar em nós mesmos como os menores, como os últimos. Portanto, são todos bons.

Aqui verificaremos que Inane, BhakÚ e Karma chegam todas a um mesmo ponto. O mais alto ideal é eterna e inteira abnegação do eu, quando não mais existe "eu", mas tudo é "vós". Consciente, ou inconscientemente, a Karma-Yoga leva a tal objetivo.

Por muito que seus sistemas de filosofia e religião possam diferir, toda a humanidade se mantém reverente e respeitosa diante do homem pronto a se sacrificar pelos demais. Não é absolutamente uma questão de credo ou doutrina. Mesmo homens que muito se opõem a todas as idéias religiosas, sentem, quando assistem a um desses atos de completo sacrifício do eu, que devem reverenciá-lo. Não tendes visto que mesmo o cristão mais intolerante, quando lê A Luz da Ásia, de Edwin Arnold, reverencia Buda, que não pregou Deus algum, mas apenas o sacrifício do eu? A única coisa que o intolerante não sabe é que seu próprio objetivo e meta na vida, são, exatamente, os mesmos que animam os que dele diferem.

O adorador, mantendo sempre em sua mente a idéia de Deus e um ambiente de bondade, chega ao mesmo ponto, finalmente, e diz: - Seja feita a tua vontade", sem nada reter para si próprio. Isso é abnegação. Assim, Inane, Bhakti, e Karma aqui se encontram, e isso foi o que todos os grandes pregadores dos velhos tempos quiseram dizer, quando ensinaram que Deus não é o mundo. Disseram, muito corretamente, que o mundo é uma coisa e Deus é outra. O mundo, para eles, é egoísmo, Deus é altruísmo. Pode alguém viver num trono, num palácio de ouro, e ser perfeitamente altruísta; então, esse está com. Deus. Outro pode viver numa choupana, usar andrajos, e nada ter com o mundo; ainda assim, se for egoísta, está inteiramente submergido no mundo.

Voltando a um de nossos pontos principais, dizemos que não nos é possível fazer o bem sem ao mesmo tempo fazer o mal, ou fazer o mal sem produzir algum bem. Sabendo isso, como podemos trabalhar? Houve seitas neste mundo, entretanto, que tiveram uma forma espantosamente disparatada de pregar o suicídio lento como forma única de sair do mundo, porque, se o homem viver, tem de matar pobres animais e plantas, ou prejudicar algo ou alguém. Assim, de acordo com elas, a única maneira de sair do mundo seria morrer. Os jainos pregaram tal doutrina como seu mais alto ideal O ensinamento parece muito lógico.

A verdadeira solução, porém, é encontrada no Bhagavad-Gitâ. ]É a teoria do desapego: não sermos apegados a coisa alguma enquanto fazemos nosso trabalho na vida. Saber que sois inteiramente separados do mundo, que estais no mundo, mas que, seja o que for que nele façais, não o fazeis por amor de vós próprios. Qualquer ação que realizeis por vós próprios fará pesar sobre vós os seus efeitos. Se a ação é boa, tereis bom efeito, e se é má, tereis de aceitar o mau efeito. Mas qualquer ação que realizeis sem ser por amor de vós próprios, seja ela qual for, não terá efeito sobre vós. Nas escrituras hinduístas se encontra uma sentença muito expressiva, que envolve esta idéia: "Mesmo que ele mate todo o universo, ou seja ele próprio morto, não é o matador nem o morto, quando sabe que não está agindo absolutamente por si próprio".

Portanto, a Karma-Yoga ensina: "Não abandoneis o mundo. Vivei no mundo, saturai-vos tanto quanto possível de sua influência. Mas, se for para vossa própria satisfação, não trabalheis, absolutamente". Satisfação não deve ser a meta. Matai primeiro o vosso eu, depois tomai o mundo inteiro como a vós mesmos. Como costumavam dizer os antigos cristãos: "O homem velho deve morrer". Esse homem velho é a idéia egoísta de que o mundo foi feito inteiramente para nosso gozo. Pais pouco esclarecidos costumam fazer seus filhos rezarem: "õ Senhor, criastes este Sol para mim, esta Lua para mim. . .- como se o Senhor nada mais tivesse a fazer senão criar tudo para aqueles bebês. Não crisineis vossos filhos a dizer tais tolices. O mundo não foi feito para nós. Milhões morrem todos os anos e o mundo não sente isso. Milhões de outros vêm ocupar-lhes o lugar. Assim como o mundo nos considera, consideremos o mundo.

Havia, na Índia, um grande sábio chamado Vyasa. É conhecido como o autor dos Aforismos da Vedanta, e foi homem virtuoso. Seu pai tentara tornar-se um homem muito perfeito, e não tivera sucesso. Seu avô também o tentara, e malograra. Seu bisavô igualmente o tentara, e com idêntico resultado. O próprio Vyasa não tivera sucesso completo, mas seu filho, Shuka, nasceu perfeito. Vyasa ensinou-lhe sua sabedoria, e depois de lhe ter ensinado pessoalmente o conhecimento da Verdade, mandou-o para a corte do rei Janaka. Janaka era um grande rei, e chamavam-no Janaka Videha. Videha significa "sem corpo". Embora fosse rei, esquecera-se completamente de que tinha um corpo, e sentia, constantemente, que era um Espírito. O jovem Shuka lhe foi enviado para com ele aprender.

O rei sabia que o filho de Vyasa iria ter com ele para aprender sabedoria, e fez alguns arranjos prévios. Quando o moço se apresentou às portas do palácio, os guardas não tomaram conhecimento dele. Indicaram-lhe apenas um lugar para sentar-se, e ali esteve ele, durante três dias e três noites, sem que ninguém lhe dirigisse a palavra, sem que ninguém lhe perguntasse quem era e donde vinha. O jovem era filho de um grande sábio, sendo seu pai reverenciado em todo o país, e ele próprio era uma das pessoas mais respeitáveis. Entretanto, os guardas inferiores, vulgares, do palácio, não tomavam conhecimento dele. Depois disso, e subitamente, os ministros do rei e todos os grandes oficiais da corte vieram ter com ele e o receberam com as maiores honrarias. Conduziram-no para o interior do palácio e levaram-no para aposentos esplêndidos, oferecendo-lhe os mais fragrantes banhos e as mais maravilhosas roupagens. Durante oito dias o mantiveram ali, em toda a espécie de luxo. O rosto sereno e solene de Shuka não se alterou na mínima coisa ante a modificação do tratamento. Foi no luxo o mesmo de quando esperara à porta do palácio.

Levaram-no, então, à presença do rei. Este estava em seu trono, e havia música, danças e outras diversões, no salão. Dando-lhe uma taça cheia de leite até as bordas, o rei pediu ao jovem que fizesse sete vezes a volta ao salão, sem derramar uma só gota do líquido. Shuka apanhou a taça e iniciou sua caminhada em meio à música e à atração de belos rostos. Conforme lhe recomendara o rei, deu sete voltas sem que uma só gota de leite se derramasse. A mente do jovem não podia ser atraída por coisa alguma no mundo, a não ser que ele o permitisse. Quando levou a taça ao rei, este lhe disse: "O que teu pai te ensinou e o que aprendeste por ti mesmo, eu só poderei repeti-lo. Conheceste a Verdade. Volta para a tua casa".

Assim, o homem que conseguiu o autodomínio, não pode sofrer qualquer influência externa. Para ele não há mais escravidão. Sua mente tornou-se livre. Só um homem assim está reparado para viver bem no mundo. Alguns são pessimistas, e dizem: "Como é horrível este mundo! Como é perverso!" Outros são otimistas, e dizem: "Como é belo este mundo! Quão maravilhoso é!" Para os que não dominaram sua própria mente, o mundo ou é cheio de mal, ou, no máximo, uma mistura de bem e de mal.

Este mesmo mundo se tornará um mundo feliz para nós quando nos fizermos senhores de nossa mente. Nada mais nos influenciará, então, como bem ou mal. Encontraremos tudo em seu lugar exato, para que haja harmonia. Com freqüência, os homens que começam dizendo ser o mundo um inferno, acabam por afirmar que ele é um paraíso, quando conseguem obter a prática do autodomínio. Se quisermos ser autênticos karma-yogues e desejarmos treinar-nos para a obtenção desse estado, onde quer que comecemos estejamos seguros de que terminaremos na perfeita abnegação. E assim que esse eu aparente tiver desaparecido, o mundo inteiro, que a princípio nos parecia repleto de mal, parecerá o próprio céu, e cheio de bem-aventuranças. Sua própria atmosfera será abençoada, todos os rostos humanos serão bons. Tal é o fim e a meta da Karma-Yoga, e tal é a sua perfeição na vida prática.

Nossas várias Yogas não colidem umas com as outras: cada uma delas nos conduz ao mesmo fim e nos faz perfeitos; apenas têm de ser laboriosamente praticadas. Todo o segredo está na prática. Deveis primeiro ouvir, depois pensar, e a seguir praticar. Essa é a regra de cada Yoga. Primeiro tendes que ouvir falar nelas e compreender de que se trata. E muitas coisas que não compreenderdes se irão fazendo claras pelo constante ouvir e pensar.

É duro entender tudo imediatamente. A explicação de tudo está em vós mesmos, afinal, Ninguém jamais foi realmente ensinado por outrem. Cada um de nós tem de ensinar a si próprio. O mestre externo oferece apenas a sugestão que acorda o mestre interno para o trabalho e a compreensão das coisas. Então, as coisas se farão mais claras para nós, através de nosso próprio poder de percepção e pensamento, e nós as compreenderemos em nossas próprias almas, e tal compreensão se desenvolverá no intenso poder da vontade. Primeiro sentir, depois querer, e de tal querer vem a tremenda força para agir, força que percorrerá cada veia, cada nervo, cada músculo, até que toda a massa do corpo se transforme num instrumento da Yoga da ação desprendida, e o resultado desejado, de perfeita abnegação pessoal e integral altruísmo, é devidamente alcançado.

Esse resultado não depende de qualquer dogma, doutrina, ou crença. Trate-se de um cristão, de um judeu, ou de um pagão, não importa, Sois destituídos de egoísmo? Essa é a pergunta. Se o sois, sereis perfeitos sem ler um só livro religioso, sem ir a um só igreja ou templo. Cada uma das nossas Yogas é adequada para fazer o homem perfeito sem o auxílio das demais, porque todas têm a mesma finalidade. As Yogas da ação, da sabedoria, da devoção, são todas capazes de servir como meios diretos e independentes para a obtenção de moksha . "Só os tolos, não os sábios, dizem que o trabalho e a filosofia são coisas diferentes." Os sábios sabem que, embora aparentemente difiram uma da outra, elas conduzem, finalmente, ao mesmo objetivo da humana perfeição.

Quatro Yogas deAuto-Realização


Swami Vivekananda

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