sábado, 2 de julho de 2011

Auto-realização através do serviço altruísta (Karma Yoga) - segunda parte

A essência integral deste ensinamento é que deveis trabalhar como senhor, não como escravo. Trabalhar incessantemente, mas não fazer trabalho de escravo. Trabalhai através da liberdade! Trabalhai através do amor!


Ajudar materialmente os outros, remover suas dificuldades físicas, é realmente grande, mas o auxílio é tanto maior quanto maior é a necessidade e maior o alcance desse auxílio. Se as carências de um homem puderem ser removidas por uma hora, ele está sendo ajudado. Se suas carências puderem ser removidas por um ano, o auxílio será maior. Mas se suas carências forem removidas para sempre, essa será, naturalmente, a maior ajuda que lhe pode ser dada.

O conhecimento espiritual é a única coisa que pode destruir para sempre as nossas angústias. Qualquer outro conhecimento satisfaz nossas necessidades apenas por algum tempo. É somente com o conhecimento do Espírito que a raiz da causa das necessidades é aniquilada para sempre. Assim, ajudar espiritualmente um homem é o maior auxílio que lhe possa ser dado. Quem dá ao homem conhecimento espiritual, é o maior benfeitor da humanidade, e, como tal, sempre vemos que foram os homens mais poderosos que ajudaram o homem em suas necessidades espirituais, porque a espiritualidade é a verdadeira base de todas as nossas atividades na vida. Um homem sólida e fortemente espiritual será forte em todos os outros pontos, se assim quiser. Enquanto não houver força espiritual no homem, nem mesmo as necessidades físicas poderão ser corretamente satisfeitas.

Seguindo-se ao auxílio espiritual vem o auxílio intelectual. O dom do conhecimento é um dom muito superior ao de alimento ou roupas é mesmo mais importante do que dar vida a um homem, porque a verdadeira vida do homem consiste no conhecimento. Ignorância é morte; conhecimento é vida. A vida é de muito pouco valor se é uma vida em trevas, tateando através da ignorância e da angústia.

Depois vem, naturalmente, o auxílio físico ao homem.

Portanto, considerando a questão de auxílio a outros, deve-mos sempre esforçar-nos por não cometer o erro de pensar que a ajuda física é a única que pode ser dada. Não só não é a única como é a última, porque não pode promover satisfação permanente. A angústia que sinto quando tenho fome é acalmada pelo comer, mas a fome retorna. Minha angústia só pode cessar quando eu estiver satisfeito para além de qualquer carência. Entfio, a fome não me fará angustiado, não haverá aflição ou desgosto que me comovam. Portanto, esse auxílio que tende a nos fazer espiritualmente fortes, é o maior. Depois dele vem o auxilio intelectual, e ainda depois o auxílio físico.

As angústias do mundo não podem ser curadas através apenas do auxílio físico, Enquanto a natureza do homem não se modificar, essas carências físicas se apresentarão sempre, angústias serão sempre sentidas, e não haverá quantidade de auxílio físico que as venha curar completamente. A única solução para esse problema é fazer a humanidade pura. A ignorância é a mãe de todo o mal e de toda a angústia que vemos. Que os homens tenham luz, que sejam puros, e espiritualmente fortes e instruídos. Só então a angústia cessará neste mundo, não antes. Podemos converter cada casa do país numa casa de caridade, podemos encher a terra com hospitais, mas a miséria do homem continuará a existir enquanto o caráter do homem não se modificar.

Lemos muitas e muitas vezes no Bhagavad-Gitâ que todos devemos trabalhar incessantemente. Todo o trabalho é, pela sua natureza, composto de bem e de mal. Não podemos fazer trabalho algum que não resulte em bem algures, e não pode haver trabalho algum que não cause algum mal algures. Todo o trabalho deve ser, necessariamente, mescla de bem e de mal. Ainda assim, mandam que trabalhemos incessantemente. Bem e mal terão ambos seu resultado, produzirão seu karma. Boas ações acarretam-nos bons efeitos; más ações acarretam-nos maus efeitos. Mas, boas e más, ambas são cadeias para a alma. A solução alcançada no Bhagavad-Gitâ em relação a essa natureza produtora de cadelas do trabalho, diz que, se não nos apegarmos ao trabalho que fazemos, ele não terá qualquer efeito aprisionador sobre nossa alma. Essa é a Idéia central no Bhagavad-Gitâ: trabalhai incessantemente, mas não vos apegueis ao trabalho.

Cada trabalho que realizamos, cada movimento do corpo, cada pensamento que nutrimos, deixa uma impressão sobre a matéria da mente, e mesmo que essas impressões não sejam evidentes à superfície, são suficientemente fortes para agir sob a superfície, subconscientemente. o que somos, a cada momento, é determinado pela soma total dessas impressões na mente. O que eu sou, exatamente neste momento, é o efeito da soma total de todas as impressões da minha vida passada.

Isso é, realmente, o que se chama caráter. O caráter de cada homem é determinado pela soma total dessas impressões. Se boas impressões prevalecem, o caráter torna-se bom, se as más prevalecem, o caráter torna-se mau. Se um homem ouve constantemente más palavras, pensa maus pensamentos, faz más ações, sua mente estará cheia dessas impressões, e elas influenciarão seu pensamento e seu trabalho sem que ele esteja consciente desse fato. Essas impressões, aliás, estão sempre trabalhando, e seu resultado deve ser o mal. Aquele homem será mau, não poderá evitar isso. A soma total dessas impressões criará nele uma poderosa força motriz para a realização de más ações. Será como uma máquina nas mãos dessas impressões, e elas o forçarão a fazer o mal. Igualmente, se um homem pensa bons pensamentos e faz boas ações, a soma total dessas impressões será boa, e elas, da mesma forma, o forçarão a fazer o bem, mesmo a despeito dele próprio. Quando um homem fez uma certa quantidade de bom trabalho e pensou uma quantidade de bons pensamentos, há nele uma tendência irresistível para fazer o bem. A despeito de si próprio e mesmo que deseje fazer o mal, sua mente, como a soma total de suas tendências, não lhe permitirá fazer tal coisa: as tendências o farão recuar. Ele está inteiramente sob a influência das boas tendências. Quando o caso é esse, o bom caráter de um homem está estabelecido, é o que se diz.

Há um estágio ainda mais alto do que o de ter boa tendência, e é o desejo de libertação. Deveis recordar-vos de que a liberdade da alma é a meta de todas as Yogas, e cada uma delas conduz igualmente ao mesmo resultado. Somente pelo trabalho o homem pode chegar onde Buda chegou largamente pela meditação e Cristo pela prece. Buda foi um trabalhador inane, e Cristo era bbÁta, mas idêntica meta foi alcançada por ambos. A dificuldade aí está. Libertação significa liberdade integral liberdade das ataduras do bem tanto quanto liberdade das ataduras do mal. Uma cadeia de ouro é tão cadeia como a cadeia de ferro. Há um espinho em meu dedo. Eu uso outro espinho para retirar o primeiro, e quando o tiver tirado jogo ambos fora. Não tenho necessidade de conservar o segundo espinho, porque ambos, afinal, não passam de espinhos. Assim, as más tendências têm de ser anuladas pelas boas, e as más impressões da mente podem ser removidas pelas novas ondas de impressões boas, até que tudo quanto é mau quase desapareça ou seja dominado e mantido sob o controle num recanto da mente. Mas, depois disso, as boas tendências também têm de ser dominadas. Assim, o "apegado- torna-se "desapegado". Trabalha, mas não deixa que a ação ou o pensamento do trabalho produza impressão funda em sua mente. Deixa que as ondulações venham e vão, deixa que as grandes ações procedam dos músculos e do cérebro, mas não consente que elas façam qualquer impressão profunda na alma.

Como se pode fazer isso? Vemos que a impressão de qualquer ação à qual nos liguemos, permanece. Posso conhecer centenas de pessoas durante o dia, e entre elas encontro também alguém a quem amo, e quando me recolho, à noite, posso tentar pensar em todas as faces que vi, mas só aquela face aparece diante da mente - a face que encontrei talvez apenas por um minuto, e que amei. Todas as outras se desvaneceram. Meu apego particular a essa pessoa causou impressão mais profunda em minha mente do que todas as outras faces. Fisiologicamente, as impressões foram todas as mesmas. Cada uma das faces que vi, desenharam-se na retina e o cérebro fotografou-as. Ainda assim não houve similaridade de efeito sobre a mente.

Portanto, sede desapegados. Deixai as coisas trabalharem; deixai os centros do cérebro trabalharem, trabalhai incessantemente, mas não deixeis que uma ondulação domine vossa mente. Trabalhai como se fosseis um forasteiro nesta terra, um residente temporário. Trabalhai incessantemente, mas não vos aprisioneis; o aprisionamento é terrível. Este mundo não é nossa habitação, é apenas um dos muitos estágios através dos quais estamos passando. "Toda a natureza é para a alma, não a alma para a natureza." A própria razão da existência da natureza está na educação da alma. Não há outra significação. Ela existe porque a alma deve ter conhecimento, e através do conhecimento deverá libertar--se. Se nos lembrarmos sempre disso, jamais nos apegaremos à natureza. Saberemos que a natureza é um livro no qual devemos ler, e que, quando ganharmos o conhecimento exigido, o livro já não terá valor para nós.

A essência toda deste ensinamento é que deveríeis trabalhar como senhores e não como escravos, trabalhar incessantemente, mas não fazer trabalho de escravo. Não vedes como todos trabalham? Ninguém pode estar inteiramente no ócio. Noventa por cento da humanidade trabalha, mas como escravos, e o resultado é angústia, porque todo esse trabalho é egoístico. Trabalhai através da liberdade! Trabalhai através do amor!

A palavra amor é muito difícil de entender. O amor jamais chega enquanto não houver liberdade. Não é possível haver amor verdadeiro no escravo. Se comprardes um escravo e o ligardes com correntes, fazendo-o trabalhar para vós, ele trabalhará como um servo, mas nele não haverá amor. Assim, quando nós próprios trabalhamos pelas coisas do mundo como escravos não pode haver amor em nós, e nosso trabalho não é trabalho real. Isso é verdadeiro em relação tanto ao trabalho feito para parentes e amigos, como ao trabalho feito para nós mesmos. Trabalho egoístico é trabalho de escravo. E aqui vai um teste: Cada ato de amor traz felicidade. Não há ato de amor que não traga paz e bem-aventurança como reação.

Portanto, o verdadeiro amor jamais pode reagir para causar dor o que ama ou é amado. Suponhamos que um homem apegado ame uma mulher. Quer tê-la toda para ele, e sente-se extremamente ciumento de seus movimentos. Deseja que ela se sente a seu lado, que fique perto de si, e coma e se mova segundo suas ordens. É escravo da mulher e deseja tê-la como sua escrava. Isso não é amor; é uma espécie de afeição mórbida do escravo, a insinuar-se como amor. Não pode ser amor, porque é doloroso. Se a mulher fizer tudo quanto esse. homem deseja, causar-lhe-á dor. Com o amor não há reação dolorosa, mas sempre uma reação de beatitude. Caso contrário, não é amor, e está sendo confundido com alguma outra coisa. Quando tiverdes conseguido amar vosso marido, vossa esposa, vossos filhos, todo o mundo, o universo, de tal maneira que não haja dor ou ciúme, nem sentimento egoístico, então estareis num estado próprio para o desapego.

Krishna diz: "Observa-me, Arjuna! Se eu parar de trabalhar, por um momento que seja, todo o universo morrerá. Nada tenho a ganhar pelo trabalho: sou o Senhor, o único. Mas por que trabalho? Porque amo o mundo". Deus é desapegado, porque ama. Esse verdadeiro amor nos torna desapegados.

A obtenção desse desapego custa quase o trabalho de urna existência, mas assim que atingimos esse ponto, alcançamos a meta do amor e estamos livres. Os grilhões da natureza nos soltam, e vemos a natureza como ela é. já não forja cadeias para nós. Ficamos inteiramente livres e não tomamos em consideração os resultados do trabalho. Quem se preocupa, então, com o que possam ser esses resultados?

Pedis algo a vossos filhos, em troca do que lhes dais? Vosso dever é trabalhar para eles, e aí termina a questão. O que quer que façais por uma pessoa em particular, por uma cidade, ou estado, assumi a mesma atitude que tendes em relação a vossos filhos - não espereis coisa alguma em retribuição. Se puderdes tomar, invariavelmente, a posição do dador, sendo tudo quanto dais um dom gratuito para o mundo, sem qualquer pensamento de retribuição, vosso trabalho não vos trará apego. O apego vem apenas quando esperamos algo em troca do que damos.

Se trabalhar como escravos resulta em egoísmo e apego, trabalhar como senhores da vossa própria mente dá origem à beatitude do desapego. Muitas vezes falamos em direito e justiça, mas vemos que no mundo o direito e a justiça são conversa de criança, apenas. Há duas coisas que governam a conduta dos homens: poder e misericórdia. O exercício do poder é, invariavelmente, o exercício do egoísmo. Homens e mulheres tentam obter o máximo de qualquer poder ou vantagem que obtenham. A misericórdia é o céu em si mesma. Para sermos bons temos todos de ser misericordiosos. Mesmo a justiça e o dever devem firmar-se na misericórdia. Todo o pensamento que se refere a obter retribuição pelo trabalho que fazemos, atrasa nosso progresso espiritual, e, ao fim, traz-nos angústia.

Há outra forma na qual esta idéia de misericórdia e caridade despida de egoismo pode ser levada à prática: é olhar o trabalho como um culto, no caso de acreditarmos num Deus Pessoal. Aqui, damos todos os frutos ao Senhor, e, assim cultuando-O, não temos direito de esperar nada da humanidade pelo trabalho que realizamos. O próprio Senhor trabalha incessantemente, e está sempre desapegado. Assim como a água não pode umedecer a folha do Iótus, o trabalho não pode ligar o homem sem egoísmo, dando origem ao apego em relação aos resultados desse trabalho.

Agora vedes o que significa Karma-Yoga: mesmo às portas da morte, ajudai qualquer um, sem fazer perguntas. Mesmo que decepcionados milhões de vezes, não façais uma pergunta, e nunca excogiteis o que fazeis. Nunca vos gabeis de vossos donativos aos pobres nem espereis a gratidão deles, agradecei-lhes, antes, a oportunidade que vos dão de praticardes com eles a caridade.

]É necessário, no estudo da Karma-Yoga, saber o que é o dever. Se tenho de fazer alguma coisa, devo primeiro saber ser esse o meu dever, e depois posso fazê-la. Verificamos que há várias idéias sobre dever, diferindo de acordo com as diferentes posições na vida, com os diferentes períodos históricos, e com as diferentes nações.

A palavra dever, como qualquer outra palavras universal abstrata, não se pode definir claramente. Apenas podemos dar uma idéia, conhecendo suas operações e resultados práticos. A idéia comum de dever, em toda a parte, é a de que cada homem deve seguir o que lhe dita a sua consciência. Mas o que faz de um ato um dever? Se um cristão encontra um pedaço de carne diante dele e não o come para salvar sua própria vida, ou não o dá para salvar a vida de outros, sentirá, seguramente, que não cumpriu seu dever. Mas se um hindu ousar comer aquele pedaço de carne ou dá-lo a outro hindu, está igualmente seguro de que não cumpriu o seu dever. O treinamento e a educação do hindu fazem com que assim se sinta. No último século houve na Índia famosos bandos de ladrões, conhecidos como tugues. Consideravam como de seu dever matar qualquer homem que pudessem apanhar, e tomar-lhe o dinheiro. Quanto maior fosse o número de homens que matassem, melhores pensavam ser eles. Habitualmente, se um homem vai por uma rua e derruba outro com um tiro, espera-se que ele Iamente isso, pensando que cometeu um erro. Mas se esse mesmo homem, como soldado de seu regimento, mata não um, mas vinte homens, podemos estar certos de que se sentirá alegre e pensará que cumpriu notavelmente bem o seu dever.

Vemos, portanto, que não é a coisa feita que define o dever. Assim, é inteiramente impossível dar uma definição objetiva de dever. Contudo, o dever tem seu lado subjetivo. Qualquer ação que nos leve em direção a Deus é uma boa ação e é nosso dever. Qualquer ação que nos leva para baixo é má e não é nosso dever. Desse ponto de vista subjetivo podemos ver que certos atos tendem a nos exaltar e enobrecer, enquanto outros atos tendem a nos degradar e brutalizar. Mas não é possível determinar, com certeza, quais os que terão determinada tendência em relação a todas as pessoas, de todas as espécies e condições. Há, entretanto, apenas uma idéia de dever que tem sido universalmente aceita por toda a humanidade, de todas as idades, e seitas, e países, e que está resumida no aforismo sânscrito que diz: "Não maltrates ser algum. Não maltratar ser algum é virtude, maltratar qualquer ser é pecado".

O Bhagavad-Gitâ alude, freqüentemente, a deveres dependentes do nascimento e da posição na vida. O nascimento e a posição, na vida e na sociedade, determinam, amplamente, a atitude moral e mental das pessoas em relação às diversas atividades da vida. Portanto, é nosso dever fazer o trabalho que nos exalta e enobrece de acordo com os ideais e as atividades da sociedade na qual nascemos. Mas devemos recordar, particularmente, que os mesmos ideais e atividades não prevalecem em todas as sociedades de todas as nações. Nossa ignorância nesse ponto é a causa principal de tanto ódio entre uma nação e outra. Quando chegue 1 a este país (América do Norte) e estava visitando a feira de Chicago, um homem puxou meu turbante, por trás. Olhei e vi que se tratava de um homem de aspecto muito cavalheiresco, corretamente vestido. Falei-lhe, e quando descobriu que eu conhecia o inglês ficou bastante embaraçado. Noutra ocasião, na mesma feira, outro homem me deu um empurrão. Quando lhe perguntei por que fazia aquilo, também se mostrou embaraçado e gaguejou algumas desculpas, dizendo: "Por que o senhor se veste dessa maneira?- As simpatias daqueles homens estavam limitadas ao âmbito de sua própria maneira de vestir.

Muita da opressão que as nações mais fracas sofrem por parte das poderosas é causada por esse preconceito, que esteriliza o sentimento de fraternidade pelos semelhantes. Mesmo aquele homem que me perguntou por que eu não me vestia como ele, e maltratou-me por causa dos meus trajos, talvez fosse um homem muito bom, bom pai e bom cidadão. Mas a bondade de sua natureza morria assim que via um homem em trajos diferentes dos dele. Os estrangeiros são explorados em todos os países, porque não sabem como se defender. Assim, levam para seus lares impressões falsas quanto aos povos que viram. Marinheiros, soldados, e mercadores comportam-se em terra estranha de uma forma esquisita, embora nem sonhassem em fazer tal coisa em seus próprios países. Por isso, talvez, é que os chineses chamam europeus e americanos de "demônios estrangeiros". Não poderias fazer isso se tivessem conhecido o lado bom, magnânimo, da vida ocidental.

Portanto, o ponto de que precisamos nos recordar é que devemos, sempre, tentar ver o dever de outros através de seus próprios olhos e nunca julgar os costumes de outros povos pelos nossos próprios padrões. Eu não sou o padrão do universo. Tenho que me acomodar ao mundo, e não o mundo a mim. Vemos, assim, que o ambiente modifica a natureza de nossos deveres, e cumprir o dever que é nosso em qualquer ocasião em particular, é a melhor coisa que podemos fazer neste mundo. Cumpramos o dever que é nosso por nascimento, e quando o tivermos feito, cumpramos, então, o dever que é nosso por nossa posição na vida e na sociedade. Há, entretanto, um grande perigo na natureza humana - o homem nunca se examina. Pensa que está tão capacitado para ocupar o trono quanto o rei. Mesmo que o estivesse, deveria mostrar, primeiro, que cumprira os deveres de sua posição e assim deveres maiores lhe caberiam. Quando começamos a trabalhar decididamente neste mundo, a natureza nos dá golpes à esquerda e à direita, e depressa nos capacita a encontrarmos nossa própria posição. Não há homem que possa ocupar satisfatoriamente, por muito tempo, uma posição para a qual não está capacitado. Não adianta resmungar contra os ajustamentos da natureza. O que faz trabalho inferior nem sempre é homem inferior. Homem algum pode ser julgado pela mera natureza de seus deveres, mas todos devem ser julgados pela maneira e espírito com que os cumprem.

Mais tarde descobriremos que mesmo essa idéia de dever sofre modificações, e que o trabalho maior é feito apenas quando não há motivo egoístico e sugeri-lo. Ainda assim, é o trabalho através do senso do dever que nos leva a trabalhar sem qualquer idéia de dever. Então, o trabalho transforma-se em culto - ou em algo ainda mais alto. Então, o trabalho será feito por amor dele próprio. Verificaremos que a filosofia do dever, seja em forma de ética, ou de amor, é a mesma em cada Yoga - sendo o objetivo a atenuação do ser inferior, de forma ue o verdadeiro ser superior possa brilhar mais, e diminuir o esvanecimento das energias em planos inferiores da existência, a fim de que a alma possa manifestar-se nos mais altos.

O dever raramente é doce. Só quando o amor lubrifica as rodas é que ele corre mansamente. De outra maneira, a fricção é continua. Como poderiam os pais, de outra forma, cumprir seus deveres para com os filhos, os maridos para com suas mulheres, e vice-versa? Não encontramos casos de fricção todos os dias, em nossas vidas? O dever só é doce através do amor, e o amor só brilha em liberdade. Ainda assim, é liberdade, o ser escravo dos sentidos, da cólera, dos ciúmes, e de uma centena de outras coisas mesquinhas que devem ocorrer todos os dias na existência humana? Em todas essas pequenas rudezas com que nos deparamos na vida, a expressão mais alta de liberdade é suportar. Mulheres que são escravas de seus próprios temperamentos irritáveis, ciumentos, costumam culpar seus maridos c afirmar sua própria "liberdade- - conforme pensam - sem saber que assim provam, apenas, que são escravas. O mesmo se dá com os maridos que se queixam eternamente de suas esposas.

A única forma de subir é cumprir o dever que nos está próximo, e assim reunir forças, subindo até alcançar o mais alto estágio.

Um jovem saniâsin meteu-se numa floresta e ali meditava, fazia seu culto, e praticava a Yoga, por muito tempo. Depois de anos de duro trabalho e prática, estava ele um dia sentado sob uma árvore, quando algumas folhas secas lhe caíram na cabeça. Olhou para cima e viu um corvo e um grou brigando no topo de uma árvore, o que o levou a encolerizar-se muito. E disse:

- Quê! Ousais atirar essas folhas mortas sobre a minha cabeça!

Como, ao dizer essas palavras, olhava para as aves com muita ira, uma faísca saltou - que tal era o poder do yogue - e queimou-as, reduzindo-as a cinzas. O homem ficou muito contente, quase contente demais, ao verificar o desenvolvimento de seu poder. Podia queimar um corvo e um grou. só com um olhar!

Depois de algum tempo precisou ir à cidade - mendigar o seu pão. Chegando a uma porta, parou ali e disse:

- Mãe, dá-me comida!

Uma voz veio lá de dentro:

- Espera um pouco, meu filho.

O jovem pensou:

- Mulher miserável! Como ousa fazer-me esperar! Ignora o meu poder!

Enquanto estava assim pensando, a voz se fez ouvir de novo:

- Rapaz, não penses tanto sobre ti mesmo; aqui não há corvos nem grous.

Ele ficou atônito, e teve de esperar. Por fim, a mulher chegou e o jovem caiu a seus pés, dizendo:

- Mãe, como sabias disso?

- Meu rapaz, eu nada sei de tua Yoga e de tuas práticas. Sou mulher comum, cotidiana. Fiz-te esperar porque meu marido está doente e eu estava tratando dele. Toda a minha vida lutei para cumprir meu dever. Quando era solteira, cumpri meu dever para com meus pais; agora, que sou casada, cumpro meu dever para com meu marido. Essa é toda a Yoga que pratico. Mas, cumprindo meu dever, fui iluminada, e assim pude ler os teus pensamentos e saber o que fizeste na floresta. Se queres aprender algo superior a isto, vai ao mercado de tal e tal cidade e ali encontrarás um vyadba (alguém pertencente a mais baixa casta na índia, que inclui os caçadores e os açougueiros), e ele te dirá algo que te alegrará de aprenderes.

O saniásin pensou:

- Por que iria eu a essa cidade, à procura de um vyadha!

Mas, depois do que vira, sua mente se abriu um pouco, e ele foi. Ao chegar à cidade, encontrou o mercado e viu, a certa distância, um grande e gordo vyadha, cortando carne com uma grande faca, e falando e negociando com diferentes pessoas. O jovem disse consigo:

- Valha-me Deus! ]É este o homem de quem preciso aprender? Se a alguma coisa ele se parece, é com a encarnação do demônio!

Nesse ínterim o homem, levantando os olhos disse:

- õ Swami, enviou-vos a mim aquela senhora? Sentai-vos, até eu terminar o meu negócio.

O saniâsin pensou: "Que me acontecerá aqui?", e sentou-se.

O negociante continuou o seu mister, e depois que o terminou, recolheu o dinheiro ganho e disse ao saniâsin:

- Vinde, senhor, vinde à minha casa.

Chegados ali, o vyadha deu-lhe uma cadeira, dizendo:

- Esperai aqui.

E entrou na casa, onde deu banho no pai e na mãe, alimentou-os e fêz tudo quanto pode para agradá-los. Depois, veio ter com o saniâsin e lhe disse:

- Agora, senhor, viestes ver-me; em que vos posso ser útil?

O saniâsin fêz-lhe algumas perguntas relativas à alma e a Deus. O vyadha lhe fez uma preleção que faz parte do Maha-Marata e contém um dos mais elevados pensamentos de Vedanta.

Quando o vyadha terminou seu ensinamento, o saniâsin se sentiu estupefato e disse:

- Por que estais nesse corpo? Com um conhecimento como o que tendes, por que estais no corpo de um vyadha, fazendo trabalho tão desagradável, tão sujo?

- Meu filho, replicou o vyadha - não há dever desagradável, não há dever impuro. Meu nascimento me colocou sob estas circunstâncias e neste ambiente. Em minha mocidade aprendi o ofício. Sou desapegado e tento cumprir bem o meu dever. O meu dever é o de dono de casa, e assim faço tudo quanto posso para dar felicidade a meu pai e minha mãe. Não conheço vossa Yoga nem me tornei um saniásin, nem saí do mundo para viver numa floresta. Apesar de tudo, as coisas que de mim ouvistes e .vistes, vieram-me por eu cumprir desapegadamente o dever correspondente à minha posição.

Há um sábio na Índia, um grande yogue, um dos homens mais maravilhosos que já vi em minha existência. É homem peculiar, não ensina ninguém. Se lhe perguntardes alguma coisa, não responderá. É demasiado para ele assumir a posição de instrutor, e não o fará. Se lhe fizerdes uma pergunta e esperardes durante alguns dias, no curso da conversação ele trará o assunto à tona, e uma luz maravilhosa se projetará no que vos interessa. Disse-me, uma vez, qual era o segredo do trabalho: "Que o fim e os meios se reuniam, como uma coisa só". Quando estiverdes fazendo um trabalho, não penseis em nada estranho a ele. Fazei-o como quem faz um culto, o mais alto dos cultos, e devotai-lhe então toda a vossa vida inteira. Na história, o vyadka e a mulher cumpriram o seu dever de todo ânimo e coração, e, como resultado, tornaram-se iluminados, o que nos mostra que o cumprimento correto dos deveres de qualquer dos estágios da vida, sem apego aos resultados, leva-nos à mais alta realização da perfeição da alma.

O trabalhador que se apega aos resultados é que resmunga a propósito da natureza do dever que lhe coube. Para o trabalhador desapegado todos os deveres são igualmente bons e se tornam instrumentos eficientes com os quais o egoísmo e a sensualidade podem ser mortos e a liberdade da alma assegurada. Todos temos tendência para pensar muitíssimo bem de nós mesmos. Nossos deveres são determinados pelos nossos merecimentos, em extensão muito maior do que gostaríamos de supor. A competição desperta inveja, e mata a bondade do coração. Para os resmungão, todos os deveres são desagradáveis, nada o satisfaz e toda a sua existência está votada ao insucesso. Trabalhemos, fazendo, em nosso caminho o que quer que seja de nosso dever, e mostrando-nos sempre prontos a por nossas mãos à obra. Então, e seguramente, veremos a Luz!

Quatro Yogas deAuto-Realização


Swami Vivekananda

Nenhum comentário:

Postar um comentário